Campanha Janeiro Branco

A campanha Janeiro Branco emerge da importante simbologia do recomeço: um mês que se inaugura carregado de promessas — o marco de um novo ciclo. O branco, com sua aparente neutralidade, evoca a ilusão de uma nova página, pronta para acolher futuros projetos. Mas nisto reside uma provocação mais profunda dessa campanha: o que realmente fazemos com essa página?

O branco, longe de ser espaço de possibilidades ilimitadas, muitas vezes escancara, com uma nitidez incômoda, as marcas que carregamos do ano que passou. Essa cor, que simboliza o vazio, em vez de nos trazer algo de libertador, pode ser um fator desestabilizador. Uma página em branco só se torna genuína quando aceitamos os traços que a antecedem — as camadas sobrepostas de experiências, cicatrizes e expectativas frustradas. O Janeiro Branco, assim, não é um convite a apagar tudo, mas a olhar de frente para o que persiste: o que nos inquieta, o que nos esgota, o que ainda nos dói.

E essas inquietações não surgem no vazio. Vivemos em tempos que potencializam nossas angústias, uma era em que as promessas de bem-estar convivem com realidades que nos atravessam. Nunca fomos tão cientes da importância do cuidado psíquico, mas também nunca estivemos tão sobrecarregados por demandas que o tornam inalcançável. A era da produtividade nos promete realização, mas nos entrega exaustão. As redes sociais nos oferecem conexões, mas frequentemente ampliam o abismo entre o que somos e o que projetamos ser. Sob essa luz fria, nossas angústias se intensificam: ansiedade, depressão e burnout deixam de ser apenas diagnósticos individuais e se tornam sintomas de uma era que nos exige demais enquanto oferece muito pouco.

Mas não basta enunciar o problema; é preciso cavar mais fundo. Quando falamos de saúde mental, falamos também de histórias coletivas: a história de um país marcado pela desigualdade, pelo racismo estrutural, pela violência que atravessa os corpos de maneira desigual. Falamos de um sistema que monetiza nossa dor, que transforma o cuidado em privilégio e que naturaliza o esgotamento como condição de existência. Como romper com essa lógica? Como desnaturalizar a ideia de que adoecer faz parte do jogo?

A resposta não está em soluções fáceis. Está, talvez, em uma mudança de paradigma: em aprender a escutar o sofrimento como um sintoma de algo que vai além do individual. Produzir saúde psíquica é resistir à urgência, à pressão por respostas rápidas. É aprender a cultivar o tempo como um espaço em que podemos habitar com cuidado e paciência.

Talvez seja também hora de reavaliar o que entendemos por sucesso, por felicidade, por realização. Quem nos ensinou que a vida boa é a vida sem falhas, sem pausas, sem momentos de vazio? O vazio não é a ausência de sentido; é o espaço em que ele pode ser criado. A alegria não é a negação da dor, mas a capacidade de coexistir com ela sem ser engolido. E a saúde psíquica não é um destino, mas um processo contínuo que demanda empenho.

Nesse cenário, a psicanálise nos oferece ferramentas não para silenciar o sofrimento, mas para traduzi-lo em linguagem. Para transformar o que parece insuportável em algo que pode ser elaborado, pensado, ressignificado. E isso exige tempo: o tempo da escuta, o tempo do outro, o tempo de aprender a ser, com menos pressa.

Que este Janeiro Branco seja, então, mais do que uma campanha. Que ele inaugure um movimento: um movimento em direção a uma vida mais habitável, mais generosa, mais atenta. Que possamos transformar nossas inquietações em atos. Que a reflexão nos leve à prática, e que a prática seja coletiva, porque produzir saúde não é uma tarefa solitária. É uma aposta: uma aposta na vida, no outro, no possível. E, como toda aposta, ela carrega risco, mas também a promessa de um futuro que valha a pena ser vivido.

Texto produzido pela psicóloga Catarina Bogéa
CRP 01/21641


Catarina Bogéa é Psicóloga e Psicanalista, co-fundadora da plataforma Saúde Mental para Todos. Especialista em Gestão de Projetos Sociais, ela também é mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Seu trabalho é focado nas dissidências sexuais e populações vulnerabilizadas, tendo como objetivo a democratização da saúde integral.

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